A AUTORIDADE DO PASTOR
Hal Miller
Autoridade parece ser o assunto do momento para os cristãos. Pessoas escrevem livros após livros e fazem sermões após sermões sobre quem tem autoridade sobre quem e porque. Professores devem ensinar com autoridade, maridos reivindicam autoridade sobre suas esposas, “pastores” precisam de autoridade sobre suas “ovelhas”. Não podemos falar sobre igrejas sem nos concentrarmos no seu governo. Parece que somos incapazes de pensar no casamento sem perguntar quem tem autoridade nele. Nem mesmo atentamos para a Bíblia, sem que antes primeiramente tenhamos ouvido as últimas sobre sua autoridade. Isso parece um sério problema.
Talvez o problema seja maior nos Estados Unidos, pois usualmente nos imaginamos como não sujeitos a qualquer autoridade (N. do T. – O autor deste artigo é norte-americano). Pensamos em nós mesmos como “livres”, capazes de fazer o que quisermos, ainda que nossas vidas estejam repletas de pessoas e estruturas que exigem nossa obediência. O policial na esquina e o pessoal do Imposto de Renda têm autoridade. Autoridade não é apenas a possibilidade de obrigar as pessoas a agirem de determinada forma. Isso se chama “poder”. Poder é compartilhado pelos policiais e pelos ladrões, embora só os policiais tenham “autoridade” – a capacidade moralmente legítima de obrigar aos outros. Na verdade, esta é a nossa noção comum de autoridade: a capacidade de obrigar aos outros, respaldado (se necessário) pela força. Porém, essa noção não funciona quando transferida para contextos cristãos. Jesus e seus discípulos tinham uma visão muito diferente de autoridade.
O inquietante ensinamento de Jesus com respeito à autoridade entre Seus seguidores contrasta com a experiência deles em quaisquer outras sociedades. Ele lhes disse: os reis dos gentios se apossam das nações e aqueles que sobre elas têm autoridade são chamados “benfeitores”. Eles exercitam seu poder e tentam (com mais ou menos sucesso) fazer o povo pensar que isso é para seu próprio bem. Mas, na igreja não deve ser assim. Nela, pelo contrário, aquele que lidera deve ser um servidor e aquele que é o maior deve ser como o mais jovem (Lucas 22:24-27). Antes que passe o impacto disso, você deve parar para refletir que o mais jovem e o servidor são precisamente aqueles sem autoridade no senso mundano normal. Não obstante, assim é a liderança entre o povo de Jesus.
Desafortunadamente, quase sempre nos esquivamos da força deste perturbador ensino transformando-a em retórica piedosa. Fazemos o estilo de “servos”, mas atuamos como reis das nações exercendo autoridade. Porém, mesmo os reis das nações tratam de fazer com que sua autoridade seja aceitável, legitimando-a com uma retórica piedosa – por isso, se auto-intitulam “benfeitores”. Então, de que forma somos diferentes? Se desejarmos viver como seguidores de Jesus, devemos considerar seriamente Seu critério de que líderes são como crianças e servos, sem autoridade.
O aspecto mais óbvio do que o Novo Testamento tem a dizer sobre liderança e autoridade é a falta de ênfase que nele se percebe, sobre o assunto.Por exemplo, de todas as principais cartas de Paulo, só em Filipenses 1:1 se faz uma menção passageiras aos líderes. No geral, ele ignora o assunto, como o fazem outros autores bíblicos. Os primeiros seguidores de Jesus permaneceram em silêncio a respeito de liderança e autoridade. Esse silêncio é bastante significativo.
O Novo Testamento usa duas palavras que correspondem a diferentes aspectos do que queremos dizer com “autoridade”. A primeira, dunamis, é usualmente (e corretamente) traduzida por “poder”. Esta palavra é menos importante para nós, pois embora “poder” possa ser associado a alguns tipos de autoridade, também pode existir sem autoridade. Alguém que porte uma arma tem poder sobre os demais, porém isso não lhe confere necessariamente autoridade.
Ainda assim, valeria a pena ver quem tem dunamis (poder) no Novo Testamento. Se recorrer a uma concordância bíblica, você encontrará que possuem poder: Deus, Jesus, o Espírito, assim como os anjos, demônios e “principados e potestades”. Estranhamente, seres humanos não têm poder em si mesmos, sendo energizados apenas por esses outros poderes, O ministério do evangelho, os milagres dos apóstolos e a vida dos crentes são todos condicionados ao “poder de Deus”. Surpreendentemente, o Novo Testamento raramente (se tanto) reconhece seres humanos com “poder” em si mesmos – o poder sempre chega às pessoas de alguma outra fonte.
As coisas se tornam mais interessantes quando nos voltamos para outra relevante palavra grega: exousia. Esta palavra é usualmente traduzida como “poder”ou “autoridade” e é o mais próximo equivalente que temos à nossa palavra “autoridade”. O novo Testamento enumera como quem tem exousia essencialmente aqueles que têm dunamis: Deus, Jesus, o Espírito Santo, anjos e demônios. Porém, agora a lista se estende àqueles humanos que não somente são energizados por autoridade do alto, mas que também têm autoridade em si mesmos.
Vemos então que reis têm autoridade para governar (Romanos 13:1-2) e os discípulos de Jesus têm autoridade sobre as doenças e espíritos (Mateus 10:1). Os crentes têm autoridade sobre várias facetas de suas vidas: suas posses (Atos 5:4), o comer, o beber e o casarem-se (1 Coríntios 11:10). O que é surpreendente, entretanto, é que o Novo Testamento não diz uma palavra sobre um crente tendo autoridade sobre outro. Temos plena autoridade sobre coisas e até sobre os espíritos, mas nunca sobre outros cristãos!
Considerando toda a ênfase que demos à discussão acerca de quem tem autoridade na igreja, isso deve ser surpreendente. Reis têm autoridade sobre seus súditos; Paulo tinha autoridade outorgada pelo sumo sacerdote para perseguir aos cristãos (Atos 9:14 e 26:10-12). Porém, na igreja, não se fala de nenhum crente que tenha exousia sobre outro, independente de sua posição ou prestígio. O Novo Testamento nada fala sobre um crente ter autoridade sobre outro. Temos autoridade plena sobre coisas, até sobre espíritos, mas jamais sobre outros cristãos, com exceção das passagens em 2 Coríntios 10:8 e 13:10, onde Paulo nos fala sobre ter “autoridade” para edificar, não para destruir. Isso faz parecer que, pelo menos ele, tinha exousia sobre outros crentes. É verdade que alguém tem que superinterpretar os textos, para transforma-los em um a verdadeira exceção, já que em ambos os casos não se fala de autoridade “sobre” alguém, mas autoridade “por” um propósito.
Ainda que aceitando que esta superinterpretação seja plausível, a exceção dificilmente seria verdadeira, quando levamos em conta duas coisas: primeira, Paulo, nessa parte de sua carta, está falando “como louco”, como ele mesmo admite. Ele evita reclamar autoridade sobre outros, quando fala “sobriamente” e é improvável que se sentisse satisfeito conosco usando seu “louco” discurso como base única para reclamar que os líderes da igreja tenham autoridade espiritual sobre outros crentes; segunda, o contexto da carta é caracterizado pela persuasão. O profundo significado disso ficará claro no devido tempo.
Paulo usa de muita conversa, tratando de persuadir aos coríntios a que o escutem. Se ele “tinha autoridade” sobre eles, no conceito que temos dela, então qual a razão para a preocupação? Por que simplesmente não dar as ordens e pronto? A resposta, como veremos, reside na natureza peculiar da relação entre os líderes e os outros crentes.
Porém, antes de tratarmos disso, devemos evidenciar que Paulo carecia de autoridade, no sentido com que o mundo a usa normalmente (poder moralmente legítimo), inclusive aqui onde supostamente ele mesmo o afirma. Isso nos deve prevenir bastante no sentido de não basearmos a autoridade dos líderes meramente nas duas frases em 2 Coríntios.
Agora, analisemos as coisas de outro ângulo. Em vez de perguntar quem tem autoridade no Novo Testamento, devemos fazer a pergunta oposta: “A quem deve alguém obedecer?”. A resposta também é interessante: se fizermos uso de hupakouo, que é o equivalente grego de “obedecer”, você verá que devemos obedecer a Deus, ao Evangelho (Romanos 10:16) e ao ensino dos apóstolos (Filipenses 2:12 E 2 Tessalonicenses 3:14). Crianças devem obedecer aos seus pais e servidores aos seus mestres (Efésios 6:1-5). Porém, devem os crentes obedecer aos líderes das igrejas? Se assim é, os escritores do Novo Testamento diligentemente evitaram dize-lo.
Mas, o que dizer de Hebreus 13:17, que prescreve “obedeçam aos seus guias?”. Este texto é interessante, pois ele pode oferecer-nos uma visão do lado positivo do entendimento a respeito da liderança no Novo Testamento. Até agora, coloquei ênfase no negativo – que as lideranças não têm autoridade no nosso sentido usual e que os crentes não são chamados a obedece-las. Porém, apesar de tudo isso, o Novo Testamento mostra que existem líderes nas igrejas locais, que são reconhecidos como tal e que suas existências e ministérios são importantes para a saúde do corpo.
Qual é o lado positivo desse entendimento de liderança? Em Hebreus 13:17 há uma pista. Se você examinar o verbo traduzido por “obedecei” no texto citado, descobrirá que ele é uma forma da palavra peitho, que significa “persuadir”. Na forma usada aqui, ele significa algo como “deixe-se persuadir por” ou “tenha confiança em”. Isso nos é de valia. Os crentes devem deixar-se persuadir por seus líderes. E o resto da igreja deve ser “parcial” a favor, ao ouvir o que ele tem a dizer. Devemos permitir-nos ser persuadidos por nossos líderes, não os obedecendo cegamente, porém argumentando com eles e estando abertos para o que estejam dizendo. (Agora fica claro por que era tão importante que as declarações de Paulo em 2 Coríntios estivessem em um contexto de persuasão. Ele estava tentando persuadir aos outros a se deixarem persuadir por ele).
O outro verbo usado em Hebreus 13:17 reforça essa conclusão. Quando o texto destinava-se a exortar as pessoas a que se “submetessem” aos líderes, não era empregada a palavra grega para “submeter”. A palavra normal é hupotassomai, que designa algo como alguém se introduzir em uma organização sob o mando de outra pessoa. Assim, algumas vezes somos instruídos a nos submeter aos governos (Romanos 13:1, Tito 3:1), aos papéis sociais aos quais estamos obrigados (Colossenses 3:18 e 1 Pedro 2:18) e às “instituições humanas” de nossa sociedade (1 Pedro 2:13).
A palavra aqui, porém, é diferente. Ela é hupeiko e ocorre somente aqui, no Novo Testamento. Ela denota não uma estrutura à qual alguém se submete, mas uma batalha depois da qual alguém se rende. A imagem é de uma séria discussão, um intercâmbio, depois do qual uma das partes se entrega. Isso encaixa perfeitamente com a noção de que devemos nos deixar persuadir pelos líderes da igreja, em lugar de simplesmente nos submetermos a eles como poderíamos fazer ante os poderes existentes e as estruturas da vida.
Tudo isso faz sentido, no critério de anciãos ou supervisores nas epístolas pastorais. Nesses escritos, caráter – e não carisma ou capacidade administrativa – é a coisa mais importante sobre os líderes. Eles devem ser “respeitáveis”. Se supusermos que eles devem ser persuasivos, então faz sentido que devam ser altamente respeitáveis, pois esse é o tipo de pessoa cujas palavras nos inclinamos a considerar muito seriamente. O tipo de respeitabilidade definido aqui acrescenta credibilidade à palavra dos líderes e, portanto, nos dá a confiança de nos abrirmos para sermos persuadidos por eles.
Porém, há mais. A capacidade de persuasão desses líderes depende da verdade. Provavelmente, se os líderes erram em seus julgamentos, mas estão seriamente empenhados em servir, não ficarão felizes se alguém os acompanhar no erro. Um líder que tenha carisma para fazer as pessoas acreditarem em algo que não seja verdadeiro e o faz, é verdadeiramente demoníaco. Ser persuadido de uma mentira é a pior forma de escravidão. Os líderes da igreja estão atados à verdade e a defendem acima de tudo, no seu serviço aos outros.
Essa necessidade de servir à verdade é a razão pela qual o Novo Testamento enfatiza a obediência ao evangelho ou ao ensino dos apóstolos, em lugar do ensino dos líderes. A confiança gerada pelo serviço é perigosa se não estiver coordenada com uma cotidiana obediência às verdades do evangelho. Se o busca da verdade não for a base da liderança do corpo, a verdade que se pode criar pelo serviço é outra, uma forma mais sutil de poder – o poder ao qual chamamos manipulação.
A persuasão pressupõe diálogo – e o diálogo requer a participação ativa de todo o corpo. Nosso entendimento comum de autoridade isola os líderes e os coloca acima dos que estão sob sua autoridade. A liderança de serviço genuíno, no entanto, tem suas bases no diálogo que o acompanha. Os líderes da igreja não precisam da retórica piedosa dos reis nem da força que existe por trás dela. Ao contrário, por serem persuasivos, eles podem confiar no diálogo como o campo e o canal de seu serviço.
Assim, a genuína liderança da igreja é baseada no serviço, na verdade e na confiança e não na autoridade. Líderes da igreja são chamados pela verdade que emana de suas vidas, dignas de serem imitadas e respeitadas, verdadeiras vidas de serviço. Esse tipo de vida gera a confiança dos demais. Assim, os líderes, como os demais membros do corpo, estão sempre em comum sujeição à verdade que está em Cristo.
Tradução de Otto Amaral
Se você fala português e deseja algum esclarecimento sobre a igreja apostólica ou sobre o artigo acima ou quer fazer algum comentário sobre o mesmo, entre em contato com Otto Amaral no Brasil, pelo e-mail: ottoamaral@uol.com.br
Hall é graduado em teologia, tendo mestrado pela George-Conwell e doutorado em teologia sistemática pelo Boston College. Ex-professor de ética, ele agora trabalha na área secular, depois de haver investido vinte e cinco anos de sua vida numa rede de igrejas domiciliares em Salem, Massachusetts. Hall e sua família vivem hoje no Estado da Virginia, nos Estados Unidos. Ele foi pessoa importante no desenvolvimento da House Church Discussion List (Lista de Discussão das Igrejas Domiciliares), que atua através da Internet. Esse site pode ser acessado: WWW.GROUPS.YAHOO.COM/GROUP/HCDL/